quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Marília de DirceuSoneto 2

Num fértil campo de soberbo Douro,
Dormindo sobre a relva, descansava,
Quando vi que a Fortuna me mostrava
Com alegre semblante o seu tesouro.

De uma parte, um montão de prata e ouro
Com pedras de valor o chão curvava;
Aqui um cetro, ali um trono estava,
Pendiam coroas mil de grama e louro.

- Acabou - diz-me então - a desventura:
De quantos bens te exponho qual te agrada,
Pois benigna os concedo, vai, procura.

Escolhi, acordei, e não vi nada:
Comigo assentei logo que a ventura
Nunca chega a passar de ser sonhada.

Tomás Antônio Gonzaga
Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo,
Porás a ovelha branca, e o cajado;
E ambos ao som da flauta magoado
Podemos competir de extremo a extremo.

Principia, pastor; que eu te não temo;
Inda que sejas tão avantajado
No cântico amebeu: para louvado
Escolhamos embora o velho Alcemo.

Que esperas? Toma a flauta, principia;
Eu quero acompanhar te;
os horizontes Já se enchem de prazer, e de alegria:

Parece, que estes prados, e estas fontes
Já sabem, que é o assunto da porfia
Nise, a melhor pastora destes montes.

Cláudio Manuel da Costa
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luis de Camões
Transforma se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assi co a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.

Luis de Camões

domingo, 1 de novembro de 2009

V ( DONA MARIA)

Quero nestas folhas
Muito documentar
Agora, que ainda respiro,
Agora, que ainda vivo,
O que é meu posso doar.

Meus olhos para o cego
Para que possa enxergar
Que meu coração em outro peito
Continue a palpitar.

Que aproveitem de meu corpo
Tudo que possam aproveitar.
Mas, em troca, um favor
Quero implorar

Eu amo a vida
E quero muito viver.
Mas como não sou imortal
Um dia vou morrer.

Quando esse dia chegar
A minha vontade
Devem respeitar.

Por mim, não levem luto
Em prova de sentimento.
Ninguém precisa ver fora
O que se sente por dentro.

Não chorem por mim
Tenham compreensão.
Sofrem os que fican
Não os que vão.

Não me façam velório
Onde só existe falatório.
Onde sobre tudo se argumenta
E o morto não se respeita.

Quero que lembrem de mim
Sempre a trabalhar.
Não parada, imóvel,
E todos a me olhar.

Não quero mausoléu
Para todos admirar.
Nem uma simples campa,
Onde alguém venha a chorar.

Não quero enterro
Que é a ida sem volta.
Quero que lembrem de mim
Viva, não morta.

Não me enterrem, por favor.
Se tiverem por mim
Um pouquinho e amor.

Só devemos pôr na terra
O que dela possa brotar.
Alimentos para vida
E flores para enfeitar.
O que para terra não serve
Nós devemos queimar.

Minha última vontade
Deve ser respeitada.
Que eu seja cremada
E as cinzas, por alguém, sopradas.
POEMAS DE MINHA MÃE IV ( DONA MARIA)

Queria ser um rochedo
Que o mar vive a banhar
Com sua espuma branca
Sempre a acariciar.

Num vai e vem constante
Que nunca vai terminar.
Deus, força imensa, criou
Toda a Natureza
Que o homem quer exterminar.
A Aurora de Nova York
Chico BuarqueComposição: F. G. Lorca / R. Fagner
A aurora de Nova Iorque temQuatro colunas de lodoE um furacão de pombasQue explode as águas podres.
A aurora de Nova lorque gemeNas vastas escadariasA buscar entre as arestasAngústias indefinidas.
A aurora chega e ninguém em sua boca a recebePorque ali a esperança nem a manhã são possíveis.E as moedas, como enxames,Devoram recém-nascidos.
Os que primeiro se erguem, em seus ossos adivinham:Não haverá paraíso nem amores desfolhados;Só números, leis e o lodoDe tanto esforço baldado.
A barulheira das ruas sepulta a luz na cidadeE as pessoas pelos bairros vão cambaleando insonesComo se houvessem saídoDe um naufrágio de sangue.