sábado, 4 de agosto de 2007

MOLHANDO AS PALAVRAS


"Vim molhar as palavras". Achei a metáfora muito bela, significando: vim tomar um café.Porém, molhar as palavras vai além de tomar um café, é um convite para um papo gostoso, uma amizade.Aquele menino de pouco mais de vinte anos era capaz de metáforas incríveis. Era um poeta, sorte de quem já havia percebido. Ele vai morar para sempre em meu coração.

terça-feira, 31 de julho de 2007

MAMA ÁFRICA



Ela vinha pelas ruas com seu gingado capaz de conduzir batalhões para onde quisesse. Entretanto, não queria.Quem a olhasse, de frente, enxergaria uma Mama África bela pelo porte, bela pela cor negra reluzente, bela pela alegria e bela pelo sentimento de mundo que poucos tiveram a sutileza de perceber em seu olhar.

domingo, 29 de julho de 2007

OLHAR DO CORAÇÃO

A minha grande amiga Sônia


Tarde chuvosa de verão...Yris espreguiçou-se na cadeira de balanço onde adormecera ouvindo música. Acordou renovada...Um sonho suave e acalentador acrescentava novidade àquele despertar.
Yris nunca esmorecia. Diante de grandes tombos que levara, abalava-se, porém reeerguia-se e continuava a caminhada. sempre acreditou na vida. Pondera o presente, balaçando-se com vagar. O que poderia fazer com aquela chuva insistente que não combinava com o pulsar quente de vida em seu coração? Dirigiu-se à janela...Podia ver o mar mais agitado do que nos outros dias. Precisava sair e ver gente...As nuvens cinzentas logo desapareceriam ou suavemente se abririam para dar passagem aos raios de ol.
Às vezes, na rua, observava os rostos... tantos rostos marcados pela dor, olhos baços sem esperança. Conseguia, quando tinha sorte, encontrar pessoas sorrindo, não socialmente, de coração...Onde deixara o guarda- chuva? Nunca sabia. Era melhor aguardar para sair... Quando menina, caminhava sob a chuva alegremente. Gostava de sentir o rosto e os cabelos molhados, sensação de liberdade. Quando perdera esse gosto? estava consciente de que muito se perde ao longo da vida, mas não sabia porque nunca mais caminhara sob a chuva... que foi cessando... e ela, lepidamente, pegou a bolsa e saiu...Lá vai ela lendo do outdoor ao cão sarnento que dorme na calçada...Que proveito faz dessas leituras? Perguntam os amigos. mal sabem eles que ela não quer tirar proveito algm, só quer aprender a enxergar nem mais nem menos do que os outros...É preciso treino constante para não se perder a capacidade de ver a vida. A areia tépida envolvendo-lhe os pés já descalços...Se pudesse também desnudar a alma! Só, diante daquele mar!... Agora o sol vinha acariciar-lhe o rosto...Sentada à beira-mar, respirava sinceramente o fim da tarde....Para Yris o cenário era pura poesia!
Acreditava que a sinceridade estava acima de tudo nesta vida. Entretanto, a mentira poética ela aceitava como verdade inquestionável. Os homens hábeis com as palavras encantavam-na. Percebia que mentiam, até mais do que os simplórios,e fazia de contam que tudo era verdade; uma verdade em que só os que conhecem o reino das palavars acreditam. Criavam mundos, sentimentos, vestiam-na com doces e delicadas palavra a que ela se entregava com o suave suspiro das mulheres românticas.
Olha o mar... enxerga o horizonte... Ele surgiu, sem saber de onde nem por quê, para fazê-la, enfim, feliz, como nunca fora. Como criava com ternas e delicadas palavras a história que começaram a viver! Pouco importava, a ela quem era, onde vivia. Estar com ele, através das palavras, era vida!... Chegou de mansinho... aquele tigre...duas palavras cá, duas lá. Bolero sensual da linguagem da vida. Dançavam à distância. Ou ela dançava e ele, felino maestro, observava, dirigindo-a?Noite...encontro nos sonhos dela delirante. Ele conduzia no andar cadenciado do ritmo sutil de cada frase sugerida... e ela só ouvindo o que a imaginação lhe ditava. "Segredos de um abismo do meu mar", divagava Yris. seduzida pelas palavras! Não o gesto, não o rosto, mas as palavras...."Ai, palavras... que estranha potência a vossa", não a potência do Romanceiro da Inconfidência. A Yris, a revolução que ora interessava era a do coração, a potência do discurso amoroso... E não viveu nem metade do que as palavras dele prometiam. Mesmo assim, viveu como nunca! Horas a fio conversavam....Andava suspirar pelas ruas da cidade a que nem mais prestava atenção.
Vivia agora numa cidade imaginária onde só os dois existiam. Durante meses Yris foi feliz mergulhada num mundo de mentiras poéticas, até que sem saber para onde e por quê, ele se foi.
Olhou o mar, não tão agitado agora... Rememorou palavras, momentos e continuou sentindo aquela terna felicidade que lhe deixara no coração...Quantas mulheres tiveram o privilégio de viver intensamente o instante da paixão sem ficar com a dolorosa cicatriz do abandono? Isso já lhe bastava. Observou o céu. Que pôr-do-sol irreverente! Invadindo o corpo, alucinando a memória. sangue quente das touradas, de todas as guerras vitoriosas e perdidas, pincelando o céu...Ela respirou a vida como quem descansa da maratona ininterrupta e fotografou com um piscar de olhos o ouro sobre sangue no horizonte. Suspirou buscando o azul...O Olhar rejuvenescendo de paz....O amor tardaria chegar novamente? tanto fazia! Alimentava-se daquele céu que nenhum homem poderia dar-lhe e poucos saberiam as sensações que nela despertavam. Yris não conseguia despertar de vez de seu mundo de sonhos e tampouco resguarda-se, permitindo que sempre brotasssem em seu coração sentimentos intensos. Que fazer? nascera de peito aberto para a vida....As luzes da cidade... uma a uma como olhos piscando, vento com cheiro de mar. Um último flash daquele mar indescritível....Hora de enfrentar o presente...
Ergue o corpo lentamente como quem carrea o fardo da memória. caminhar pela praia e deixar a mão do vento cariciar os cabelos " O vento só fala do vento...A mentira está em ti" ecoam os versos pessoanos na lucidez que relutar aceitar. Levanta os braços como se quisesse alcançar o céu e, vagarosamente, desenha no ar, com seu corpo, o arco da aliança. Lágrima tem sabor de mar.

sábado, 28 de julho de 2007

O ÓBVIO NÃO É ULULANTE

O tempo não respeita reino algum.
Assim sendo, no pequeno reino de Cururu, não aconteceu a exceção, mas a pior de todas as regras...
No princípio, a população caminhava com os olhos ávidos de horizonte.
Os mais altos eram os primeiros a percebê-lo, alimentando os de estatura mediana e os mais baixos com o sonho: a bela visão do horizonte! E todos continuavam, alentados , a caminhar.
Um dia, um anão mal- humorado chegou ao reino de Cururu.
- Vocês são uns tolos! Cansam-se à toa. Não há como chegar ao horizonte!
Todos se entreolharam mudos. Nunca haviam imaginado essa possibilidade que o anão lhes revelava.
- O que você sugere, anão?
Irritadíssimo por terem percebido quem ele era, tentou disfarçar. Falou, aparentando tranqüilidade:
- Ora, parem essa caminhada sem sentido. Descansem sentados no zero.
- Sentados no zero?
- Sim. Fiquem de cócoras.
A nova maneira de viver, embora trouxesse um certo desconforto, parecia mais segura à população. Somente um homem perguntou:
-Mas... de cócoras?
O anão, percebendo que já havia cativado a população, argumentou gigantesco:
- Assim as diferenças de estatura serão praticamente mínimas, com a vantagem de que, parados, o sonho de chegar ao horizonte será uma inutilidade. Serão evitadas possíveis frustrações da longa e acidentada caminhada, etc...etc...
Todos concordaram com o anão, exceto o homem que questionara a nova postura. Era um insensato! Melhor que partisse...
...Parece que a população de Coral ficou sabendo das mudanças ocorridas em Cururu...
... Sorrateiramente, os coralenses estão chegando a Cururu...
P.S.: Quem visou os coralenses sobre a nova postura dos habitantes de Cururu foi o anão.Não se sabe seu paradeiro. Sabe-se, porém, que o insensato continua buscando o horizonte. Foi ele que me contou essa história.

AMOR A VISTA

Aos meus filhos

Ele estava no jardim. Da janela do quarto, observava-o sem que me visse.
Fazia bolhas de sabão e seu sorriso acompanhava-as livres, leves, assustadoramente livres...Nada que pudesse detê-las. Ao primeiro obstáculo,dissolviam-se, desapareciam, mas outras substituíam-nas.Às vezes uma resistia mais, subia suavemente e não se sabia o que lhe aconteceria.
Eu o queria assim... Ele era minha melhor parte, embora só lhe ofertasse a pior. Queria-o livre, mas só lhe oferecera um mundo que pudesse observar através das grades.
Aquele sorriso mantinha a esperança. Como preservá-lo? Eu era a morte dolorida destilada gota a gota em seus olhos que descobriam o mundo. A cada " não" eu sabia estar sufocando um desejo. O necessário adestramento social que me competia como mãe. A mão que conduzia os passos e o dedo apontando: " O caminho é este". Eu sabia que não poderia abandoná-lo... Sabia que, anos mais tarde, eu só iria realmente poder observá-lo, ele escolheria o caminho... Notou minha presença.
- Mãe, que bicho é este?
- É tatuzinho, meu filho. Se você encostar um dedo nele, vira uma bolinha.
- Posso pegar?
- Pode.
- Virou bolinha, mãe! E agora?
- Ele só está se protegendo. Quando puser no chão, ele desenrola e volta a caminhar.
- Posso pôr uns no vidro para mim?
- Se puser um pouco de terra para eles e deixar sem tampa, pode. Vou pegar um vidro para você. Pronto, ponha um pouco de terra e coloque alguns, não muitos.
- Por quê?
- Se você lotar o vidro, podem morrer. Pouco espaço para viver.
- o que será que eles comem?
- Não tenho certeza, mas devem se alimentar da própria terra. Depois você pergunta a seu pai. Cuide deles, viu? Não os deixe morrer. Se perceber que algum morreu, devolva-os ao jardim.
- Tá bom, mãe. Você tem história de tatuzinho em algum livro pra contar?
-Não tenho, mas a gente inventa uma.
-Os tatuzinhos podem dormir no meu quarto?
- Melhor não, deixe-os sobre a mesa do quintal.
- Vamos?
- Aonde você quer ir, filho?
-Inventar uma história de tatuzinho.
Pegou miha mão.
Meus olhos pediam-lhe: " Leva-me, ensine-me a vida."

DECIFRANDO-SE

Viver é amar o trapézio apesar de todas as vertigens, correndo o risco, para ser seguro, de que vale a pena tentar o pulo, algo sempre amortecerá a possível queda. Tornar-se cinza e renascer, não temendo o inimigo que jaz em nós mesmos. Estender a mão e acariciar a vida frágil, maravilhosa. Beber o sangue quente das arenas que edificamos em nossa alma e não desistir se for amargo. Respirar o almíscar do sonho e entregar-se sólido. Ouvir o canto das sereias sem amarrar-se ao mastro. Fitar o dragão e derrotá-lo com um sorriso. Estar seguro de que o olho de Polifemo não nos vencerá. O olho, por gigantesco que seja, por ser único, não decifra os múltiplos enigmas. Viver é cavalgar a dor e deixar o selvagem explodir, posto que pronto.

AMADOR

O verdadeiro amador sente em silêncio.Nós que ainda tateamos o amor precisamos das palavras. Precisamos dizer e ouvir palavras doces, suaves e ternas.
Um mundo tecido de palavras, palavras, palavras...
Quantas vezes já não inventamos o amor com frases belas?! Conseguimos ir além da frase registrada no papel?
Quantas vezes procuramos aquele poeta que sintetizou no verso o amor, talvez nunca sentido, mas criado pela palavra?
Amar em silêncio... aprenderemos a?
Não dizer, apenas sentir.
Não a palavra, mas o ato,transbordando de amor, tornando fértil o coração do outro.

PACÍFICA GERADA PELA VIOLÊNCIA

Em tempos de violência, para que a alma resista a tantos ferimentos, o senso de humor é o lenitivo eficaz para suportar a cólera e o deboche do próximo.
Não pensem que isso seja acomodação. É constatação.Aquele que nos fere, já foi ferido, ou talvez esteja apenas dizendo-nos: " vivo das chagas alheias."
É difícil chamarmos alguém que aja dessa maneira de próximo, porém, se é o que temos ao nosso redor, que haja paciência!Porque amar o próximo que nos ama, convenhamos, é muito fácil. Mais fácil ainda se esse próximo concordar sempre conosco... E viva o egoísmo que disfarçamos tão bem ( ?).
Não pensem que chegar a essa conclusão pode considerar-se um achado precioso.Enquanto o próximo não somos nós, mas o outro,podemos, graças à retórica, tecer página e páginas de observações. Quando nós somos o próximo, como podemos resistir à descoberta? Terrível, ou não, há sempre um fragmento de nossa face que relutamos para aceitar.Nesses momentos, o humor pode salvar-nos. Olhamo-nos no espelho e dizemos: "Francamente, quando você vai aprender a ser gente?".Suspiramos e encaramos novamente o espelho: "Vá, deixe de manha. Vou dar-lhe mais uma oportunidade. pois se tenho de olhá-lo todo dia, é melhor que estejamos de bem."
Bendito senso de humor! Quem está de bem consigo mesmo aprende a viver com o próximo, seja ele o que for.

QUADRO

Alguém poderia ter pintado aquele quadro e alguns menos sensíveis à dor diriam: "Que mau gosto!"
Era realmente um quadro.
A chuva caía insistente, a avenida coberta de carros e ele acariciava o rosto da mulher,quase menina. Era um misto de ternura e extrema sensualidade. Ela sorria entre amedrontada e voluptuosa. Ao fundo, uma escada e seu arco que se projetava sobre a avenida, um homem gesticulava e falava sozinho, de vestes rasgadas e sujas com olhar baço dos que já perderam o sabor da vida. Quem poderia garantir que aquele homem já não acariciara rostos como o daquela mulher?
Tracei uma linha unindo os dois homens Que estranho rigor a vida impõe aos seres humanos. Que tortuosos caminhos percorremos?
... Desejei acariciar o homem andrajoso e saber se ainda seria capaz do gesto de amor.

TRANSFORMAÇÃO

Transformação não é menosprezo ao que se desconhece. Somente o conhecimento possibilita mudança. Por isso, acredito que o lendário Mago Merlim tinha razão: " o maior mal do homem é que ele sempre esquece."
Não fosse assim, a Fênix renascendo das próprias cinzas seria uma imagem viva para nós e saberíamos que somos capazes de renascer.

VITÓRIA INÚTIL

Nas mãos, a cabeça do Minotauro
Mas como viver sem o inimigo
Que carrega a nossa culpa?

DESCOBERTA INÚTIL

O Minotauro não existe.
Mas como sair deste
Labirinto?

FALA DE UMA ALUNA

À mestra Manon

E se, de repente, você me ensinasse a ser, e comigo corresse o risco de eu não ser o que os outros desejam?
E se, de repente, você me ensinasse a ser não o que você é, mas a ser com você?
E se, de repente, você me ensinasse que não é possível ser, sem que o fazer aconteça com paixão?
E se, de repente, você me ensinasse a despertar em mim o calor da vida em cada pedaço de meu corpo?

DE COMO ELIMINAR O OUTRO

Se a visão do outro te incomoda,
Cega-o.
Se as palavras do outro não dizem o que queres ouvir,
Corta-lhe a língua,
Se, enfim a existência do outro te é insuportável,
apunhala-o pelas costas.
Mas...cuidado!
Há sempre um outro te espreitando a cada esquina
Com um espelho nas mãos para
refletir
a
TUA
FACE!

ESFINGE

Há séculos a esfinge ofereceu o enigma a Édipo:
'DECIFRA-ME OU DEVORO-TE"
Hoje a Esfinge é
TELEVISIVA
E profere o enigma a todos nós, cegos, surdos-mudos voluntários:
"DECIFRA-ME OU REIFICO-TE"

FRAGMENTOS

Ainda tateamos nossas vidas.Da nascente de um rio vem surgindo, vagarosamente, o sentimento, porque mais segura e cuidadosa é hoje esta mulher que lhe escreve.Você me fascina, encanta e desperta em mim paixão pela vida, pelo seu discurso...Vou devagar para não me machucar e jamais desejaria machucá-lo, doce presença em minha vida. Você fez renascer das cinzas que mantive aquecidas a crença de que há homens capazes de sustentar, sem que se sintam ridículos, a beleza do discurso amoroso. Meus fragmentos e os seus aproximam-se e vão compondo um mosaico que muitas pessoas já não podem mais ver (que pena!) por terem esquecido essa chama a que chamamos paixão...Sentimento que nunca se manifesta da mesma forma. Toda vez que principia a renascer em mim é diverso,mais rico e mais intensamente livre.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

A BELA FERA

Cabelos longos,lisos e aloirados.Pele aveludada, olhos irresistivelmente azuis. Voz suave e doce. Roupas sempre discretas e de tons escuros. Arriscava, por vezes, um vermelho. O dia que chegou de blaiser e saia azul-marinho, botas semi-longas marrons; despertou minha atenção.Eu a vi sedutoramente elegante. Belo porte. Sua nome trazia a nobreza daqueles que lutam por um ideal. Quando falava chamando a atenção, era como se seduzisse seu interlocutor e o convencesse a realizar o que, na verdade, deveria realizar. Pensava como homem, mas seu coração era de mulher.

ALGARAVIA

À dona Adelaide

Há muito não ouvia a palavra que saiu melodiosa... A tépida fala entre a Espanha e o Brasil. Um pé lá outro cá.
O rosto era belo. Moreno, sobrancelhas arqueadas. O tempo vivido no continente americano a fez mais espanhola.
Não pude resisitir à voz e à palavra que renascia...algaravia...A fluência com que me contava a Espanha me transportava para o lugar onde nunca estivera.
" A arte se faz nas ruas. Ri-se muito... canta-se...Lorca? Sim... mas rasga-me o peito; meu pai morreu na guerra civil, Foi um tempo triste de miséria e humilhação, Viemos para o Brasil. .. Sabe que visitei um povoado onde as mulheres teceram um tapete de seda e ouro?De uma beleza de fazer chorar..."
Um tapete de seda e ouro...
" E o teatro na calle, na rua! Ah, que sonho! A dança, o canto, a música, aquela algaravia."
" Algaravia"- pronunciei a palavra lentamente, imaginando o que ela presenciara.
"Sim, como se diz ... como algazarra, sabe? Muito ruído, todos falando ao mesmo tempo..."
Algaravia, Algarve... Não. algaravia não é algazarra. Algazarra é violenta, rude, áspera.Algaravia....via...via... suave. Vozes, muitas vozes espanholas naquela voz. Risos... canto, rompendo a crosta cotidiana, penetrando, raio atingindo a carne. Mais que palavra. sangue .Origem.
"Acho que estou falando demais. Incomodo, não? Desde que cheguei é a primeira pessoa a quem conto essas coisas todas que vi. Revi a família, a cidade onde nasci...Sabe, gosto muito de conversar, mais do que isso, gosto das pessoas todas...Crianças, velhos, homens, mulheres... estou cansando voce, não?
" Não, é bom ouvi-la falar. Sua voz tem sabor de terra. É como se eu estivesse na Espanha. Faz-me muito bem."
" Ah, quero dar um presente a você."
"É lindo, obrigada!"
Era um leque espanhol..." Como hacen las espanholas?" Perguntei-lhe com meus parcos conhecimentos da língua e daquela mulher que me impressionava por seu pulsar intenso de vida...Ela, com um belíssimo sorriso, abriu o leque à espanhola...E foi, num olhar entre alegria e dor, deliciosamente vibrante e quente... ALGARAVIA!...

MIRANTE

Seu olhar tentava abarcar, por partes, a cidade. Conseguira conciliar o barulho cáustico das buzinas com o cantar do bem-te-vi. O canto de outros pássaros chamavam-lhe a atenção, enquanto os pombos traçavam, nas ruas um caminho que ela tentava entender. O anúncio estonteante da Coca-cola intrigava seu olhar,buscando ler além de palavras. Começava a enxergar mais do que gostaria.Seu coração,pouco a pouco, estava tornando-se elástico, onde poderiam caber até os inimigos de última hora.

DESEJO

Você adormeceu em meu regaço...
E minh'alma deixou a sua repousar
Meu desejo aprendeu a aguardar
Porque meu destino agora traço

O fado português que me gerou
Não é pai, é mãe por isso também Fada
E de minha imaginação você brotou...
Não é príncipe nem fera...
A semente se fez bela e germinou...

"Olhai os lírios do campo, eles não tecem"
E o milagre já se instaurou...
Não há santidade na palavra
É a mira da luneta que eu sou

Não tema, marinheiro, a viagem
Seu desejo nunca soçobrou
Venha comigo desvendar esta linguagem
E Deus lhe ensinará o mar que eu sou

AZOUGUE

Olhos verdes brilhantes, cabelos alourados, soltos que o vento acariciava com cuidado... Azougue.Sim, era bela e felina... Que ninguém mexesse com quem lhe era dileto. Abraçava com fervor a causa que considerava justa. Seu senso de justiça clamava por água. Alguns a viam egoísta. Mal desconfiavam da generosidade que se alojava em seu coração. Certa estava, de antemão, que generosidade não se ostenta e o brilho de seu olhar provinha dessa sabedoria que poucos eram capazes de compartilhar. Quem fosse escolhido teria ao lado de Helena ( esse era seu nome)o privilégio de sentar-se à mesa posta pelos deuses... O jantar servido, Helena recebia seus convivas com um prazer inusitado.. Helena sempre ofereceu seu amor aos que a aceitavam incondicionalmente e nunca esperou um vintém em troca.

O AMOR NO SÉCULO XXI

As histórias de amor estão em desuso. As sonhadoras que me perdoem, mas bom senso é fundamental, parafraseando Vinícius.
Não há mais espaço no século XXI para o amor antigo, aquele que brota de uma paixão ardente. A paixão ainda existe, mas em nosso século, adquire outra conotação. O objeto da paixão, hoje, é descartável rapidamente. O desejo satisfeito não se move para outro desejo tendo em mira o mesmo objeto. Perdemos o glamour. A velocidade das transformações que torna a nossa vida mais confortável, sem os grandes percalços que nossos pais enfrentaram, trouxe-nos um novo conceito de vida afetiva: nada dura, nem o amor. E, se ele ainda existe, pode ser solapado cada vez mais. É o preço que se paga por termos transformado em mercadoria o sentimento.Feliz de quem pode, neste século internético, ainda se remeter à antiga arte de amar, sem esquecer de que essa existe nos livros e alimenta nossas fantasias românticas .A realidade não comporta devaneios. Pode ser triste, mas é o que temos.

A DANÇA DOS SETE VÉUS

A música da vida se inicia assim que o primeiro raio de Sol atravessa o vão entreaberto da janela...Desperta... espreguiça-se...Olha-se no espelho... O tempo começa a marcar seu rosto.E daí? Retardará um pouco com cremes especiais...Veste o primeiro véu:VAIDADE. Durante uma hora, cuida-se. Um banho morno,cremes, perfume, batom, brincos, roupa pouco ousada, porque vai trabalhar...Veste o segundo véu: DISCRIÇÃO.
Tanta coisa para resolver! Não adianta ficar irritada ou demonstrar tristeza... Veste o terceiro véu: um misto de CALMA com BOM HUMOR...
Sai, caminha lentamente. No ônibus, as pessoas se amontoam, capazes de jogá-la no chão e pisoteá-la sem notar: "Bando de animais!", apenas pensa. Veste o quarto véu: POLIDEZ. Sente-se só, às vezes. teve o privilégio de conhecer poucos homens que a fizeram se sentir uma deusa... Tudo acaba... Veste o quinto véu: ESPERANÇA. Trabalha em um escritório durante oito horas por dia e, ao chegar em casa, enfrenta as tarefas domésticas. Veste o sexto véu: ZELO.
Quem sabe agora, no final da noite, um bom filme na TV? Veste o sétimo véu: CONFORMISMO.
Suspira... Sente que ainda é capaz de um breve pulsar de vida. Apaga a luz, vai até a janela. Que Lua a espera? " Tenho fases como a Lua, fases de andar escondida..." os versos de Cecília ecoam na memória...Lua Nova! Misterioso brilho da Lua Nova!...
Pela primeira vez, conscientemente, vai tirando os véus impostos, um a um, acompanhando a música insólita que invade seu corpo... A Lucidez é nua!

PILANTRA

Aos Homens de terno, meus grandes amigos


Era o pilantra mais honesto que eu já havia conhecido. terno preto, impecável, óculos escuros. Seu traje dava-lhe a dignidade que realmente possuía, evidenciada mesmo quando estava usando calça jeans.
Sua ironia machadiana chamou minha atenção. Um profundo conhecedor da espécie humana e da machista língua materna. Fascinante, por ter cultura não de mera fachada.
Pilantra usava a máscara do pessimismo para encobrir seu desdém por essa gente que se faz de humilde."Dê-lhes o poder ( como diz o sábio ditado chinês) e verá", o lobo sob a pele do cordeiro.
Pilantra tinha nome de apóstolo e sabia como ninguém professar sua descrença na espécie humana. Despertou novamente em mim a capacidade de indignação diante de um povo que se contenta com "pão e circo"( máxima romana). "Se é isso o que querem", Pilantra concordava comigo, " é isso que terão."
Bendito Pilantra, que queria ir para o inferno quando morresse. Sabia, desde sempre, que já estava em vida no inferno.
Sábio Pilantra, que, dentre os mortos-vivos, tinha um coração de ouro. Já havia encontrado o Graal. os outros que corressem atrás do prejuízo.
Pilantra estava salvo, graças a seu questionamento da realidade. Era um homem de seu tempo, embora fosse atemporal.

A odalisca e o cavalheiro

...Quando o olhar dela divisou o dele, sentiu que a mirava sorridente, como se já a conhecesse... Aquilo a perturbou um pouco. Mesmo assim, insistiu em perseguir com o olhar o cavalheiro diferente, não pelos trajes, e sim pelo brilho inusitado de seus olhos.
Ele a testou: " Você é uma odalisca". Nem por sombra ela se sentia assim, naquele momento. "Encontrei minha Scherazade." Essa ela já sufocara há algum tempo, sem deixar o hábito secreto de observar as pessoas que lhe eram personagens em potencial. Cada rosto, cada olhar eram guardados em alguma gaveta da memória...E o cavalheiro não percebeu ( ou será que sua fala era intencional, instigando-a?) que se tornaria parte da teia de palavras que ela voltaria a tecer, com cuidado, carinho e paixão.
Ele buscava uma "odalisca de olhar de Lua Nova" e ela, um cavalheiro ( ou semi-deus?) que a fizesse novamente pensar com acuidade. Ela o encontrou e poderia, por mil e uma noites, transformar em palavras tudo que gestou por longo tempo, em seu sonho de criar histórias...
Dizem que, na verdade, ela era uma odalisca, com alma de dama antiga e ele, um cavalheiro, com alma de sultão esclarecido.
Por onde andam? No reino encantado das palavras, onde todos os sonhos se realizam e o tempo não conta.

Dá licença!

Vitória era uma mulher que trazia em sua simplicidade o rastro de uma sabedoria milenar não aprendida nos livros ou na escola.
Quando se irritava com alguém, o máximo que chegava a dizer era "Ah, dá licença!", significando: Basta de mediocridade.
Intuía a vida e, sem o saber ( talvez por ser de uma inteligência maior), transformava o que era complexo em simples - coisa que muitas mulheres letradas, carregando muitos diplomas, jamais conseguem.
Ela não havia lido a dor de " A vitória nossa de cada dia" de Clarice Lispector... Com paciente esperança, sedimentou suas dores, sem rancor e, desse solo brotou, vitoriosamente, sua tranquila força... Quando alguém se preocupava demais, a ponto de transformar um rato em elefante, Vitória acalmava: " Não esquenta! Devagar a gente resolve."
Sempre admirei mulheres como Vitória. Com elas aprendi a enxergar melhor a vida.
Agora, dá licença, porque escrever demais cansa. Preciso aproveitar a vida, como Vitória me ensinou.

"Os deuses vendem quando dão"

Há séculos os deuses gregos enviaram aos mortais Pandora,a bonequinha do Olimpo, com todos os atributos desejados pelos homens. Como era mulher, deu no que deu. Ainda bem que a esperança ficou no fundo da caixa... No século XXI, resolveram enviar um deus... Não sei ao certo, ao inverso de Pandora, quantas graças ele traz em sua algibeira. Só sei que, em menos de um mês, ele tem-me agraciado de todas as formas. Fascinada.
Se as virgens, a contragosto, eram oferecidas nas aras aos deuses,eu recebo de bom grado esse deus recém-chegado em minha vida. Antes que os deuses resolvam chamá-lo para retornar ao Olimpo, vou fruir todos os momentos de que sou merecedora a seu lado. Afinal, como dizia Pessoa, "Os deuses vendem, quando dão". Talvez eu já tenha pago,antecipadamente, a eles, sabendo aguardar a sua vinda, porque nunca desisti de ser feliz.

FLASHES PAULISTANOS

Medieval Praça da Sé...
A imponente e impassível Catedral assiste ao espetáculo:
À direita, o vendedor de ervas apregoa a
milagrosa cura, convencendo os crédulos de alma impotente;
À esquerda,o desempregado equilibrista
conquista a atenção dos que dançam na corda bamba
e" sonham com bife a cavalo e batata frita";
Ao centro, o pregador espalha,
profeticamente, aos quatro ventos:
" O Salvador virá! Os dias de Satanás estão contados!"
... E já se vê estendida a mão do aleijado,
leiloando suas feridas...
...E o bem sucedido de impecável terno
corre, para investir no futuro...
...E Já se sente o odor da miséria...a mulher que dorme ( ou estará morta?)
sobre as grades de ventilação do metrô...
...E o violento perfume importado da bela
executiva de andar cadenciado
atinge os homens de boa vontade...
Sol... meio-dia..."Os sinos dobram...
Por quem?"