João Cabral de Melo Neto
O Relógio
1. Ao redor da vida do homem há certas caixas de vidro, dentro das quais, como em jaula, se ouve palpitar um bicho. Se são jaulas não é certo; mais perto estão das gaiolas ao menos, pelo tamanho e quadradiço de forma. Uma vezes, tais gaiolas vão penduradas nos muros; outras vezes, mais privadas, vão num bolso, num dos pulsos. Mas onde esteja: a gaiola será de pássaro ou pássara: é alada a palpitação, a saltação que ela guarda; e de pássaro cantor, não pássaro de plumagem: pois delas se emite um canto de uma tal continuidade que continua cantando se deixa de ouvi-lo a gente: como a gente às vezes canta para sentir-se existente. 2. O que eles cantam, se pássaros, é diferente de todos: cantam numa linha baixa, com voz de pássaro rouco; desconhecem as variantes e o estilo numeroso dos pássaros que sabemos, estejam presos ou soltos; têm sempre o mesmo compasso horizontal e monótono, e nunca, em nenhum momento, variam de repertório: dir-se-ia que não importa a nenhum ser escutado. Assim, que não são artistas nem artesãos, mas operários para quem tudo o que cantam é simplesmente trabalho, trabalho rotina, em série, impessoal, não assinado, de operário que executa seu martelo regular proibido (ou sem querer) do mínimo variar. 3. A mão daquele martelo nunca muda de compasso. Mas tão igual sem fadiga, mal deve ser de operário; ela é por demais precisa para não ser mão de máquina, a máquina independente de operação operária. De máquina, mas movida por uma força qualquer que a move passando nela, regular, sem decrescer: quem sabe se algum monjolo ou antiga roda de água que vai rodando, passiva, graçar a um fluido que a passa; que fluido é ninguém vê: da água não mostra os senões: além de igual, é contínuo, sem marés, sem estações. E porque tampouco cabe, por isso, pensar que é o vento, há de ser um outro fluido que a move: quem sabe, o tempo.
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