Biblioteca de Areiapor Abel Barros Baptista
Quem se ocupa de livros depara de vez em quando com a distinção entre os escritores que são “homens do livro” e os escritores que são “homens da vida”; e ler, em casa, o livro de um reputado “homem da vida”, que não perdeu cor nem vigor em bibliotecas, antes matou touros ou naufragou no Pacífico, é por certo uma experiência de sobressalto. Não assim com Borges, que não concede hesitação na escolha: será seguramente um “homem do livro”, se não for o respectivo paradigma contemporâneo; e será seguramente o “homem do livro” que, muito admirando Wells, lhe lê os primeiros homens na Lua não tendo para nos dizer muito mais do que as razões da sua superioridade sobre Júlio Verne, do mesmo passo que nos convida ao confronto com Cyrano, Francis Bacon ou Luciano de Samósata. Dir-se-ia que, graças a uma página escrita, a página de um ensaio, vivemos o que fazemos, que é lê-lo, em perfeita homogeneidade com o que ele, Borges, faz, que é ler outros. Nem touros nem naufrágios (o que não elimina necessariamente o sobressalto): como se o único e mútuo propósito fosse encontrar novos livros para ler ou aprender a ler melhor aqueles que já encontrámos.
E, diga-se o que se disser, não há outra razão para ler ensaios, como não há outra razão para escrevê-los. Os ensaios de Borges são propriamente peças de biblioteca: ao mais insensível, há-de por força impressionar a quantidade de livros que aquele homem leu ou simplesmente folheou. Claro que a figura do ensaísta como bibliotecário que escreve ou escritor que faz um uso competente e ostensivo da sua biblioteca não é bem um traço específico do ensaio de Borges, mas até uma trivialidade. O jovem Lukács, por exemplo, tentando esclarecer a natureza e a forma do ensaio, fazia notar que o ensaio trata sempre de qualquer coisa a que já foi dada forma, nunca cria a partir de matéria informe: e por isso, porque apenas dá nova ordem ao que já tem forma, lhe fica submetido. Adorno, com idêntico propósito, observava por sua vez que os esforços do ensaio reflectem uma espécie de ociosidade de alguém que, meio infantilmente, não tem quaisquer escrúpulos em inspirar-se naquilo que outros fizeram antes. E não terá dito Montaigne que nunca leu um autor para formar uma opinião, senão para encontrar no livro alheio a sua própria opinião já formada há muito?
A arte do ensaio é assim, numa larga medida, uma arte da citação: não da autoridade venerada e que por isso obriga, mas da forma encontrada e que por isso se impõe. Porém, contrariamente a Montaigne, há quem pretenda que o excesso de citações denuncia sempre a falta de ideias próprias. Puro preconceito, evidentemente, que vai animando aqueles que não têm de próprio sequer a ilusão da propriedade das ideias, e a cujos olhos os sinais da frequentação deambulatória da biblioteca passam por pedantismo e parasitagem. Já os ensaios de Borges, que serenamente cultivam um certo diletantismo a matizar uma enorme erudição, estão repletos de citações. “A Esfera de Pascal”, de Novas Inquirições, em menos de três páginas cita mais de trinta autores. É apenas um exemplo de uma das suas características manifestas: a cada passo o leitor topa com expressões como “Coleridge observa que...”, ou “Bertrand Russel conclui”, ou “segundo Bloy”. A outra característica manifesta será a prática de aproximações entre os autores citados (“Epicteto [...] e Schopenhauer [...] reabilitaram com grande abundância de páginas o suicídio”), e muitas vezes, além de desconcertantes, são a própria razão de ser do ensaio, a ponto de alguns deles quase se resumirem à exposição das diversas “entoações” de uma ideia, de um tema ou de uma metáfora, à busca de fontes ou à enumeração de precursores. Mas cada uma destas características, em si mesma, se chega a fazer de Borges um mestre do ensaio breve, não acaba de lhe definir a idiossincrasia: diremos que esta se encontra na perfeita adequação entre as características distintivas do ensaio e uma noção de literatura.
Conhece-se aliás essa noção: é a noção da literatura como biblioteca. Dela já se tem imprimido, porém, uma versão vulgarizada e enganadora: não se trata, para Borges, de dizer que tudo já foi dito e por isso nada de novo se pode dizer, mas de dizer que todo o dizer é repetição (incluindo, claro, o dizer que diz isso mesmo). A diferença é notável: a versão vulgar ainda está presa da pretensão à originalidade, ou seja, supõe um tempo em que as coisas foram ditas pela primeira vez. Ora, a biblioteca de Borges é, como o famoso livro de uma das suas ficções, uma biblioteca de areia: nenhum livro é o primeiro, e nenhum livro é o último. Se o espaço da biblioteca se pode percorrer com total desprezo da linha recta, ignorando a cronologia, sem receio do anacronismo nem medo das aproximações fortuitas ou caprichosas, é porque nela a literatura se apresenta como um espaço homogéneo e reversível, obra de um único autor intemporal e anónimo. Borges cita Valéry (a história da literatura entendida como história do espírito produtor e consumidor de literatura poderia ser levada a cabo sem mencionar um único escritor), cita Emerson (todos os livros do mundo parecem obra de um único cavalheiro omnisciente), cita Shelley (todos os poemas do passado, do presente e do futuro são episódios ou fragmentos de um único poema infinito). E formula a condição: “Se for válida a doutrina de que todos os autores são um autor...”, referindo-se a Angelus Silesius...!
Como pode a abundância de autores citados conformar-se com a concepção de que todos os autores são um autor? Simplesmente através da figura do único autor intemporal e anónimo como metáfora da literatura. Num certo sentido, Borges é um ensaísta de “mentalidade clássica”, para quem “o essencial é a literatura, não os indivíduos”; mas, por outro lado, a biblioteca como espaço homogéno e reversível justamente destrói a autoridade do clássico e a consequente subjugação dos vindouros: uns e outros são igualmente nossos contemporâneos, os do presente modificam a nossa concepção do passado, tal como hão-de afectar o futuro. Neste outro sentido, Borges é um ensaísta moderno, para quem o “essencial” não se capta num modelo situado num ponto qualquer do passado, ou na originalidade fundadora de um primeiro dizer, mas na própria repetição e na incessante indagação das entoações, das modulações, das diferenças que nela se insinuam.
Assim, conjugando citação e aproximação, o ensaio de Borges deixa-nos duas lições críticas. A primeira repudia a noção de livro definido essencialmente pelo autor de quem seria a expressão. Borges elege os seus autores, tem a sua biblioteca pessoal, como se sabe, mas cultiva-os nos termos que deixou explícitos no elogio de Valéry: “um homem que transcende os aspectos diferenciais do eu e de quem podemos dizer, como William Hazlitt de Shakespeare: ‘He is nothing in himself’”. Ou ainda, usando outra das suas fórmulas, elege-os como autores que são “menos literatos do que uma literatura”. A outra lição é de alerta: contra o perigo que espreita quem divaga pela biblioteca: o da tentação de encontrar toda a literatura num único autor. “Durante muitos anos eu mesmo acreditei que a quase infinita literatura se encontrava num homem. Esse homem foi Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael Cansinos-Asséns, foi Thomas de Quincey.”
Publicado pela primeira vez no Expresso, edição de 28 de Novembro de1998. Depois recolhido no livro Coligação de Avulsos. Ensaios de Crítica Literária, Lisboa, Cotovia, 2003, pp. 85-90.
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