domingo, 20 de setembro de 2009

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada - "O Guardador de Águas" (MANOEL DE BARROS)

Não tenho bens de acontecimentos.O que não sei fazer desconto nas palavras.Entesouro frases. Por exemplo:- Imagens são palavras que nos faltaram.- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.Ai frases de pensar!Pensar é uma pedreira. Estou sendo.Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.Outras de palavras.Poetas e tontos se compõem com palavras.IITodos os caminhos - nenhum caminhoMuitos caminhos - nenhum caminhoNenhum caminho - a maldição dos poetas.IIIChove torto no vão das árvores.Chove nos pássaros e nas pedras.O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.Crianças fugindo das águasSe esconderam na casa.Baratas passeiam nas formas de bolo...A casa tem um dono em letras.Agora ele está pensando -no silêncio Iíquidocom que as águas escurecem as pedras...Um tordo avisou que é março.IVAlfama é uma palavra escura e de olhos baixos.Ela pode ser o germe de uma apagada existência.Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, aofóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.Andei nas pedras negras de Alfama.Errante e preso por uma fonte recôndita.Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!VEscrever nem uma coisa Nem outra -A fim de dizer todasOu, pelo menos, nenhumas.Assim,Ao poeta faz bemDesexplicar -Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.VINo que o homem se torne coisal,corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.Um subtexto se aloja.Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras.Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falasCoisa tão velha como andar a péEsses vareios do dizer.VIIO sentido normal das palavras não faz bem ao poema.Há que se dar um gosto incasto aos termos.Haver com eles um relacionamento voluptuoso.Talvez corrompê-los até a quimera.Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.Não existir mais rei nem regências.Uma certa luxúria com a liberdade convém.VIINas Metamorfoses, em 240 fábulas,Ovídio mostra seres humanos transformados em pedras vegetais bichos coisasUm novo estágio seria que os entes já transformadosfalassem um dialeto coisal, larval,pedral, etc.Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -desde que voltassem às crianças que foramàs rãs que foramàs pedras que foram.Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errara língua.Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?Seria uma demência peregrina.IXEu sou o medo da lucidezChoveu na palavra onde eu estava.Eu via a natureza como quem a veste.Eu me fechava com espumas.Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.Nem era muito que eu me arrumasse por versos.Aquele arame do horizonteQue separava o morro do céu estava rubro.Um rengo estacionou entre duas frases.Uma descorQuase uma ilação do branco.Tinha um palor atormentado a hora.O pato dejetava liquidamente ali.

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